quinta-feira, fevereiro 15, 2007

Capítulo Segundo (e assombroso) de A puta de Mensa de Woody Allen


Foto de Joana Lorça, cortesia de Nilson


Fiz a barba e bebi café forte enquanto consultava a série de resumos do Monarch College. Menos de uma hora depois, batiam à porta. Abri, e à minha frente estava uma jovem ruiva, embalada numas calças à boca de sino, como dois grandes cones de gelado de baunilha.
- Olá, sou a Sherry.
Sabiam mesmo excitar-nos a fantasia. Cabelo comprido liso, carteira de cabedal, brincos de prata, sem maquilhagem.
- Até me espanta que a deixassem entrar vestida dessa maneira – disse eu. - O detective do hotel normalmente nota uma intelectual à légua.
- Uma nota de mil acalma-o logo.
- Começamos? – disse eu, encaminhando-a para o divã. Ela acendeu um cigarro e pôs-se ao assunto.
- Acho que podíamos começar com uma abordagem do Billy Budd como a justificação que Melville dá para os insondáveis desígnios de deus para com o Homem, n’est-ce pas?
- Mas o interessante, no entanto, é que não é no sentido miltoniano. – Eu estava a fazer bluff. A ver se ela caía.
- Não. Paradise Lost não tem a subestrutura do pessimismo. – Caiu.
- Certo, certo. Caramba, tem toda a razão – murmurei.
- Penso que Melville reafirmou as virtudes da inocência num sentido ingénuo e, no entanto, sofisticado – não concorda?
Deixei-a continuar. Nem devia ter dezanove anos, mas já ganhara o calo da facilidade do pseudo-intelectual. Matraqueou as ideias dela, toda ligeirinha, mas era tudo mecânico. Sempre que eu lhe dava uma ideia, ela fingia uma reacção.
- Sim, Kaiser, sim, filho. Essa é profunda. Uma compreensão platónica do cristianismo… como é que não vi isso antes?
Falámos aí uma hora e depois ela disse que tinha de ir. Levantou-se e eu dei-lhe nota vinte.

- Obrigada, querido.
- Podes ter muito mais.
- Que queres dizer?
Tinha-lhe picado a curiosidade. Sentou-se outra vez.
Faz de conta que eu queria… fazer uma festa? – disse.
- Tipo, que tipo de festa?
- Imagina que queria duas raparigas a explicar-me Noam Chomsky.
- Oh, uau!
- Mas se não quiseres…
- Terias de falar com a Flossie – disse ela. – e fica-te caro.
Era altura de apertar a tarracha. Mostrei-lhe o crachá de detective privado e informei-a de que ia dentro.
- Quê?
- Sou da bófia, filha, e discutir Melville por dinheiro é um 802. Vais cumprir pena.
- Miserável!
- É melhor confessares, rica. A menos que queiras contar a tua história no gabinete de Alfred Kazin e acho que ele não ia gostar lá muito de a ouvir.
Pôs-se a chorar.
- Não me entregues, Kaiser – disse.- Precisava do dinheiro para acabar o mestrado. Não mederam a bolsa que pedi. Por duas vezes. Ó, meu Deus!
E lá veio o chorrilho todo – a história completa. Criada em Central Park West, campos de férias socialistas, Brandeis. Ela era todas as miúdas que já se viram na bicha do Elgin ou da Thalia, ou escrevendo a lápis as palavras “sim, mujito verdadeiro” na margem de um livro qualquer sobre Kant. Só que algures a coisa dera para o torto.
- Precisava do dinheiro. Uma amiga minha disse que conhecia um tipo casado cuja mulher não era lá muito profunda, Ele estava numa de Blake. Ela não dava. E eu disse, claro, se ele pagar, eu falo de Blake com ele. No princípio estava nervosa. Fingi uma data de coisas. Ele não se importou. A minha amiga disse que havia outros. Oh, já fui presa antes. Fui apanhada a ler a Commentary num carro estacionado, e doutra vez fui detida e revistada em Tanglewood. Mais uma, e sou três vezes desgraçada.
- Então leva-me à Flossie.
Ela mordeu o lábio:
- A livraria de Hunter College é uma fachada.
- É?
- Como aqueles corredores de apostas que têm fachada de barbearia. Vais ver.
Fiz uma chamada rápida para a sede e depois disse-lhe:
- Tudo bem, filha. Estás safa. Mas deixa-te ficar por estas bandas.
Ela ergueu o rosto para mim, com gratidão.
- Posso arranjar-te fotografias do Dwight MacDonald a ler – disse.
- Fica para a próxima.

Cenas do próximo e último capítulo:

- Kaiser é assediado por Wallace Stevens!
-Afinal, Flossie usa um 38!

Não percam o último capítulo! Sai amanhã! (ou Terça, não sei se amanhã me apetece.)

3 comentários:

Nilson Barcelli disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Nilson Barcelli disse...

Li os dois capítulos e achei a história interessante, mas à Woody Allen, claro.
Tiveste uma boa ideia na escolha da fotografia (tinha-a publicado há cerca de 1 ano - tens uma memória prodigiosa...).
Boa semana, beijos.

Tânia disse...

Que bom! Agora já cá tens o final da história. Mais uma vez, obrigada pela foto! :)
Boa semana para ti tb,
Beijinhos!