domingo, abril 30, 2006

Alegoria da Caverna- I

- Quando chegou falava de coisas muito estranhas,... bondade, amor, tolerância, caridade, quando aqui o que precisamos é de segurança, casa, pão e trabalho. Mas, o que logo nos fez desconfiar dele, foi o não nos lembrarmos de o ter visto alguma vez na televisão.




Quino, Que gente tão mazinha!


Lá estavam todos desalinhadinhos, dentro daquela casinha pré-fabricada como os anões deixados pela Branca de Neve. Entro em Lilliput.
- É verdade que o teu avô era mecânico? Porque tens esse anel? Quem te contou essa história?- e com estas bocas perguntadoras vou aquecendo e vou contando uma sobre a Lua, outra do macaco que adorava fruta, adivinhas...
O Renato traz um saco do Modelo carregado de tesouros: vai fazendo o desfile das suas relíquias tão antigas. O Ronald MacDonalds, carrinhos velocíssimos: 8 cilindros no mínimo ( a avaliar pelo barulho que sai dos seus lábios), apesar de lhes faltar uma roda, etc, etc.
Mas repara que no canto da sala o Bruno (quatro anos mais novo) esconde qualquer coisa encostando-se à parede, tapando com as pernas um pacote de Ice Tea. O Bruno ri com um riso desdentado e ternurento: também ele tem coisas para mostrar!
- Eu bebi o sumo!- e solta uma gargalhada que se desdobra em regozijo e confissão.

Turgueniev dizia que existem dois motores básicos para a vida: um é o AMOR, o outro a FOME. É de facto a Fome e o Medo da Fome que está na base de muitas acções do Ser Humano, mesmo do mais jovem, urbano ou racional.

O Renato levantou-se e sem dar tempo ao mais pequeno de fugir ou se esconder, encurralou-o e castigou-o por não partilhar com ele a comida.
- Vais levar, vais levar!- era só o que dizia e o que ouvia, enquanto pontapeava e soqueava o ar porque já o tínhamos afastado do inconsciente infractor.
A Madre veio buscar o Renato ( a Branca de Neve aparece de vez em quando!, possivelmente para comunicar que existem 7 pratinhos e 7 garfinhos, mas que não é preciso ser-se tão matemático na comida) enquanto o Bruno, ao meu lado, deixava cair gordas lágrimas em cima de um livro com uma imagem pateta de um gato a beber leite...

E eu com uma vontade de me transformar em Scarllett de Calcutá, agarrar num punhado de lenços de papel (era o que havia) e dizer:
- AND I PROMISSE THAT YOU'LL NEVER BE HUNGRY AGAIN, CARAGO!

sexta-feira, abril 28, 2006

A Moça Tecelã

Imagem do filme Brodeuses, de Eleonore Faucher



Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo.

Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia.

Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse.

E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados.

Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.

Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido.
Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins.
Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha.
E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta.
Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.

Marina Colasanti, Um espinho de marfim

quarta-feira, abril 26, 2006

Os meus Domingos




Aos Domingos a seguir ao almoço visto o fato de treino roxo e verde e os sapatos de ténis azuis, a Fernanda veste o fato de treino roxo e verde e os sapatos de tacão alto do casamento, subo o fecho éclair até ao pescoço e ponho o fio de ouro com a medalha por fora, a Fernanda sobe o fecho éclair até ao pescoço e põe os dois fios de ouro com a medalha e o colar da madrinha por fora, tiramos o Roberto Carlos do berço, metemos-lhe o laço de cetim branco na cabeça, saímos de Alverca, apanhamos os meus sogros em Santa Iria de Azóia e passamos o Domingo no Centro Comercial.
A Fernanda senta-se atrás no Seat Ibiza, com o menino e a Dona Cinda, o Senhor Borges ocupa o lugar ao meu lado, de Record no sovaco, fato completo, gravata de flores prateadas e chapéu tirolês, ajuda-me no estacionamento das Amoreiras a tirar o carrinho da mala e todos os automóveis do parque são Seat Ibiza, todos têm mantas alentejanas nos bancos, todos apresentam um autocolante no vidro que diz Não Me Siga Que Eu Ando Perdido, todos possuem uma rodela Vida Curta no guarda-lamas direito e uma rodela Vida Longa no guarda-lamas esquerdo, de todos os espelhos retrovisores se pendura o mesmo boneco de peluche, todos exibem junto à matrícula com o círculo de estrelinhas da europa a mesma rapariga de Stetson e cabelo comprido, todos trouxeram o Record, os sogros e o filho, todos devem habitar em Alverca e todos circulam a tarde inteira no centro de forma idêntica à nossa: adiante a Fernanda e a Dona Cinda, de raposas acrílicas, a coxear por causa de uma unha encravada, empurrando o Roberto Carlos que esperneia, desfeito num berreiro, com a chupeta pendurada da nuca por uma corrente, e o Senhor Borges e eu vinte metros atrás, preocupados com a carreira do Olivais e Moscavide que perdeu em Alhandra apesar de ter comprado um cabo-verdiano ao Arrentela e que em vez de jogar à bola leva as noites a mariscar tremoços na cervejaria, de brinco na orelha, no meio dos amigos pretos, com o tampo da mesa coberto de canecas vazias.
Como a Fernanda e a Dona Cinda param em todas as montras de móveis e boutiques a bisbilhotarem quinanes e kispos, acontece enganar-me e trocá-las por outra sogra acrílica, outra mulher roxa e verde e outra criança de laço, e sucede-me passar horas num banco, sem dar pela diferença, com uma Fátima e uma Dona Deta, a planear as prestações de um microondas e de um frigorífico novo, seguir para Alverca, jantar o frango da Casa de Pasto e a garrafa de Sagres do costume, e só na Terça-feira, quando vou a sair para a Junta, a minha esposa informa, envergonhada, que mora em loures ou na Bobadela, o Roberto Carlos se chama Bruno Miguel, e deu pelo engano, há cinco minutos, porque a minha Última Ceia é de estanho e a dela de bronze. Claro que corrigimos o erro no Domingo seguinte, em que volto para casa com uma Celeste e um Marco Paulo no Seat, a que juntei
(será o meu Seat Ibiza?)
um autocolante que deseja Espero Não Te Conhecer Por Acidente.
Esta semana a minha mulher chama-se Milá, o meu filho Jorge Fernando e ando a pagar um apartamento em Rio de Mouro. Como esta sempre cozinha melhor do que as outras não faço tenções de voltar às Amoreiras. Se ela gostar de telenovelas só tornamos a sair daqui a muitos anos, quando o miúdo usar um fato de treino roxo e verde, eu encontrar no armário do quarto um casaco de raposas acrílicas e um chapéu tirolês, e escutar lá em baixo, a seguir ao almoço, a buzina do Seat Ibiza da minha nora. Como nessa altura devo andar a dieta de sal por causa da tensão qualquer peixe grelhado me serve.

António Lobo Antunes, Algumas Crónicas

sábado, abril 01, 2006

Plasticina- Massa plástica que serve para moldar



Jantámos comodamente instaladas no sofá, em frente à televisão como duas boas amigas.
Fazia-se tarde, resolvi pôr pés ao caminho enquanto a Ana, que já tinha visto a peça, avisava:
- Depois conta-me o que te aconteceu. É fodido!
Não sabia de que é que ela estava a falar, mas fiquei ainda mais curiosa.
Sobrevivi à travessia das obras nos Aliados e cheguei ao Carlos Alberto, finalmente.
Desculpem-me, mas eu não percebo nada de teatro.
Por isso quando estava sentada naquelas cadeiras confortáveis e vi aquele cenário semi-destruído no palco, imaginei muitas situações e vozes, mas não acertei em nada. Ali não havia obras de melhoramento da cidade, nem jantares cómodos, nem casas de bons amigos, nem amigos. Havia uma televisão, sim, que marcava ausências. Havia um rapaz igual a outros rapazes,mas trabalhado em moldes grosseiros.
Desculpem-me, mas eu não percebo nada de teatro e tenho de falar do que vi, porque vi o avesso do Homem: hediondo. Fui engolindo tudo em pequenas porções e em crescendo.
É que o problema está em eu não perceber nada de teatro e sofrer quando vejo um homem em cima de uma grua ou uma televisão em estática.
Percebo tão pouco de teatro que quando o público aplaudia de pé, eu continuava sentada, cheia de raiva a explodir lá dentro: raiva dos noivos e dos convidados que humilharam Maksim na rua, da directora da escola que o expulsou, dos dois marmanjos sádicos que o violaram e espancaram, do homem paranóico da caixa do correio, e até de Liokha, o melhor amigo que o abandonou. Compreendi o que a Ana dizia:
- Depois, conta-me o que te aconteceu. É fodido!
Queria gritar aos actores, agora desarmados e sorridentes:
- Seus filhos da puta, primeiro incomodam-me a digestão e agora vão-se embora? Deixam-me sozinha com estes pensamentos?
Aos poucos despertei para o mundo (ou terei readormecido para ele?) e dei os meus sinceros parabéns a todos. Fora do teatro uma empatia estranha no ar: começámos a andar calmamente, ausentes do frio e dos gunas. Serei eu de plasticina?

Por isso, não percam!
Plasticina de Vassili Sigarev, encenação de Nuno Cardoso, no TeCA- Teatro Carlos Alberto- Porto
Até 2 de Abril