quarta-feira, abril 26, 2006

Os meus Domingos




Aos Domingos a seguir ao almoço visto o fato de treino roxo e verde e os sapatos de ténis azuis, a Fernanda veste o fato de treino roxo e verde e os sapatos de tacão alto do casamento, subo o fecho éclair até ao pescoço e ponho o fio de ouro com a medalha por fora, a Fernanda sobe o fecho éclair até ao pescoço e põe os dois fios de ouro com a medalha e o colar da madrinha por fora, tiramos o Roberto Carlos do berço, metemos-lhe o laço de cetim branco na cabeça, saímos de Alverca, apanhamos os meus sogros em Santa Iria de Azóia e passamos o Domingo no Centro Comercial.
A Fernanda senta-se atrás no Seat Ibiza, com o menino e a Dona Cinda, o Senhor Borges ocupa o lugar ao meu lado, de Record no sovaco, fato completo, gravata de flores prateadas e chapéu tirolês, ajuda-me no estacionamento das Amoreiras a tirar o carrinho da mala e todos os automóveis do parque são Seat Ibiza, todos têm mantas alentejanas nos bancos, todos apresentam um autocolante no vidro que diz Não Me Siga Que Eu Ando Perdido, todos possuem uma rodela Vida Curta no guarda-lamas direito e uma rodela Vida Longa no guarda-lamas esquerdo, de todos os espelhos retrovisores se pendura o mesmo boneco de peluche, todos exibem junto à matrícula com o círculo de estrelinhas da europa a mesma rapariga de Stetson e cabelo comprido, todos trouxeram o Record, os sogros e o filho, todos devem habitar em Alverca e todos circulam a tarde inteira no centro de forma idêntica à nossa: adiante a Fernanda e a Dona Cinda, de raposas acrílicas, a coxear por causa de uma unha encravada, empurrando o Roberto Carlos que esperneia, desfeito num berreiro, com a chupeta pendurada da nuca por uma corrente, e o Senhor Borges e eu vinte metros atrás, preocupados com a carreira do Olivais e Moscavide que perdeu em Alhandra apesar de ter comprado um cabo-verdiano ao Arrentela e que em vez de jogar à bola leva as noites a mariscar tremoços na cervejaria, de brinco na orelha, no meio dos amigos pretos, com o tampo da mesa coberto de canecas vazias.
Como a Fernanda e a Dona Cinda param em todas as montras de móveis e boutiques a bisbilhotarem quinanes e kispos, acontece enganar-me e trocá-las por outra sogra acrílica, outra mulher roxa e verde e outra criança de laço, e sucede-me passar horas num banco, sem dar pela diferença, com uma Fátima e uma Dona Deta, a planear as prestações de um microondas e de um frigorífico novo, seguir para Alverca, jantar o frango da Casa de Pasto e a garrafa de Sagres do costume, e só na Terça-feira, quando vou a sair para a Junta, a minha esposa informa, envergonhada, que mora em loures ou na Bobadela, o Roberto Carlos se chama Bruno Miguel, e deu pelo engano, há cinco minutos, porque a minha Última Ceia é de estanho e a dela de bronze. Claro que corrigimos o erro no Domingo seguinte, em que volto para casa com uma Celeste e um Marco Paulo no Seat, a que juntei
(será o meu Seat Ibiza?)
um autocolante que deseja Espero Não Te Conhecer Por Acidente.
Esta semana a minha mulher chama-se Milá, o meu filho Jorge Fernando e ando a pagar um apartamento em Rio de Mouro. Como esta sempre cozinha melhor do que as outras não faço tenções de voltar às Amoreiras. Se ela gostar de telenovelas só tornamos a sair daqui a muitos anos, quando o miúdo usar um fato de treino roxo e verde, eu encontrar no armário do quarto um casaco de raposas acrílicas e um chapéu tirolês, e escutar lá em baixo, a seguir ao almoço, a buzina do Seat Ibiza da minha nora. Como nessa altura devo andar a dieta de sal por causa da tensão qualquer peixe grelhado me serve.

António Lobo Antunes, Algumas Crónicas

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