Lembro-me de quando era miúda existir um ritual que me intrigava e que se veio a perder. Intrigava-me porque era uma manifestação exclusivamente feminina, (mas só na casa das mães dos meus amigos) e depois porque verificava que era um fenómeno das pequenas cidades.
Pois, isto dito assim até parece que sou uma gaja urbana, mas sou é natural da província, e como tal vou relatar o que acontecia por alturas da Páscoa e que para grande infelicidade minha (e das empresas de detergentes) já não acontece mais.
Duas ou três semanas antes da Páscoa as senhoras abriam guerra contra a sujidade em geral. Era uma maratona de limpezas que terminava no Domingo de Páscoa com a chegada do Nosso Senhor regado na Cruz –não quis dizer pregado mas sim regado!- de cuspo dos beijos de sei lá quantos lábios peganhentos!
E na casa o cheiro do incenso que os ajudantes do padre (semelhantes a ajudantes do Pai Natal, sempre pequeninos e vermelhinhos da pinga ingerida pelo caminho) traziam no turíbulo misturavam-se com a lixívia, verniz, Pronto, Bondex e cera do chão.
Mas linda era essa tradição em que a competição feminina era levada ao rubro para mostrar quem tinha a casa mais limpa. Para grande desgosto meu, a minha mãe nunca foi partidária dessa ideologia higienista e lembro-me de no tempo das vacas gordas ser a mulher-a-dias que entrava no campeonato pela minha mãe, uma espécie de duplo. Ora não era a mesma coisa! Havia uma falta de autenticidade nas minhas afirmações:
-Hoje arrastamos o aparador da sala! –dizia eu com um ar estafado e os meus amigos viam logo que aquilo era um grande coro, porque na realidade aquele plural aplicava-se à Dona Adelaide (magrinha, mas cheia de energia). Nessa altura ficava sem ninguém para brincar.
Até os rapazes eram mobilizados em função de portas a serem envernizadas, só eu tinha longos tempos de ócio!
Foi assim que tive tempo para descobrir as diferenças entre o pecado da cidade e o pecado da aldeia (e para roubar um dos perfumes da minha avódrasta e ler Emanuelle; os meus primeiros pecados de Páscoa!).
É que quando ia visitar a Titi ao Porto, o panorama era o mesmo, nada de stress, nada de limpezas extra, apenas se pensava na ementa dos dias festivos.
Percebi logo tudo!
Na aldeia as mulheres tentavam sintonizar com o sofrimento de Cristo acartando grandes baldes de água para lavar terraços e escadas, pintar divisões até ficar com insuportáveis hérnias discais, tudo em prol da dor, tudo para expiar os pecados. E se a casa estivesse limpa e arrumada assim estaria a sua alma e a da sua família. Assumiam o cargo de xamãs e purificavam a tribo toda.
Na cidade essa visão utópica já estava em desuso, o existencialismo entrara nos costumes. A Titi gostava era da festa e isso de limpar a casa ou limpar a alma estava adormecido pelas gargalhadas, pelo cheiro do cabrito assado, pela música estridente, enfim pela Vida. Afinal a Páscoa é a celebração da vida e não só da morte, não é?
Agora nestes dias que a antecedem sinto a nostalgia dos cheiros dos produtos de limpeza, dos gritos desalmados das mães das vizinhas: - Ó Guiiiiiiiiiiiiida!, e do sorriso sarcástico quando passavam pela filha da pecadora que não levava a cabo a tarefa da limpeza da Quaresma. Que saudades desse hábito tão português! Ainda bem que sobreviveu o outro! O do pecado da Páscoa!
Hoje não me apetece limpar a casa de banho, talvez vá pecar um bocadito.
Sem comentários:
Enviar um comentário