domingo, dezembro 03, 2006

É fresca ou natural?- Parte I

Nestes últimos tempos, os meus dias têm tido pontos áureos intrigantes. Talvez por ter voltado à terra natal e ter encontrado aquilo a que chamam "rotina".
Um desses pontos é quando saio da escola, com os tímpanos a latejar ameaçadoramente, e me sento no café do costume, a enfrentar os berros do empregado atirados para trás do balcão: "Sai uma tosta-mista!"; "Olha o galão quentinho!".
Se não fosse o facto de ter estado com 20 crianças com falta de ritalina (ou de um padre) iria dizer que os pregões dão uma cor medieval ao estabelecimento com problemas de identidade geracional.
É um café cómico, lembro-me de em miúda ir lá e já aí tinha aquelas cadeiras em pele com encostos triangulares. Uma parede ainda tem a alcatifa "chique" desses maravilhosos anos 80 (e penso que as prateleiras com as garrafas de vinho do Porto e os chocolates também, a avaliar pelas caixas amareladas pelo sol). As casas de banho são a prova de que o Srº Carlos compactua em investigações com a N.A.S.A. ou entidades semelhantes. Autênticas cápsulas onde o Homem de 2006 é transportado para a década de 50, há quem diga que já sentiu fragrâncias de outros tempos...
E não é que gosto de lá ir? Começo sempre por beber uma Vidago, tenho esperança que o gás me faça arrotar as decepções do dia. Mas outro dia, o empregado novo armou-me uma cilada:
- Boa Tarde! Então o que vai ser?
- Uma Vidago, por favor. - disse eu a puxar de um cadernito e uma caneta, onde costumo escrever notas importantíssimas como esta que vocês estão a ler. E nesse momento, ele lança-me a pergunta que me revoltou, que me inspirou. Uma pergunta que me fez ponderar se realmente quereria aquela Vidago matreira ou prefereria conviver insuflada com as contrariedades do dia sem as arrotar.
A pergunta que esse agitador de mentes me fez foi:
- É fresca ou natural?
Compreendem agora os leitores o meu sentimento dúbio. Vacilei entre o espanto e a simulação, entre o deslumbramento e o cansaço, entre a indignação e a bazófia, entre o responder e o ficar calada. Respondi:
-Fresca.
Tal como optei por responder, optei por ficar espantada, deslumbrada e ainda indignada com aquela pergunta.
" É fresca ou natural?" Que raiva tinha eu daquele empregado de mesa! Para além de despejar cinzeiros, tirar finos e servir lanches com toda a paciência do mundo, ele ainda se revelava um óptimo Darwin, fantástico Poirot e um Freud razoável.
"Não sou fresca, sabe, mas nisso do Homem-Natural também não acredito."
E enquanto ia engendrando esta e outras respostas, bebia a água, comia o folhado, e os habitantes daquele planeta esquisito iam entrando e saindo. Como se não tivesse acontecido nada. Naquele café meio-clandestino, disfarçado de coisa velha e sem valor onde eu descobri de onde era não-natural.

3 comentários:

Tânia disse...

perfeitamente!adoro o revivalismo dos anos 50. agora somos mais representadas como fadas do ford, anquinhas escorridas, e sorriso estacionado lá fora. De qq forma: Viva o estereótipo! ehehe...

Anónimo disse...

Estou ansiosa pela parte II, que acredito que seja tão boa como a I... Apesar da conversa não ser comigo, também gostei da resposta ao "acto-reflexo": óptima imagem!

Um abraço
Filipa

Tânia disse...

Filipinha :)
Obrigada!A conversa é com toda a gente que sinta vontade de escrever qualquer coisa (ou pintar eheh). Vai espreitar o blog desse meu amigo, tem coisas engraçadas e um concurso que vais gostar eheh...

Até breve, (será?)