quarta-feira, dezembro 27, 2006

Fim do Ano

E no final do ano a bordadeira pousou o seu dedal, a agulha, a cesta das linhas e pensou, olhando a sua obra imperfeita: " Tão belo este esqueleto." E abraçados, saíram a rodopiar pela sala.

LA LOBA
Diz-se que num lugar escondido vive uma velha, velha, velha que todos a conhecem, mas poucos a viram.

Uns dizem que a viram no deserto de Atacama, outros dizem que a viram numa floresta sombria com galhos de lenha de estranhos formatos às costas, outros dizem estava junto ao mar, outros dizem que estava na estrada de El Paso e que os homens solitários lhe davam boleia.
Por isso chamam-lhe muitos nomes: La Huesera, La Trapera ou La Loba.

É uma velha despenteada, de uma magreza feroz, calada. Raramente fala e evita as pessoas, só fala com os animais imitando as suas vozes. Apesar da sua idade, ela é capaz de caminhar durante horas em busca de ossos; é esse o único trabalho de La Loba.
Não julguem que é um trabalho vão! Ela sabe que precisa de apanhar aquilo que se poderia perder no mundo. E assim, vai enchendo a sua caverna de ossos de todos os tipos de criaturas: veado, cascavel, corvo.
Mas dizem que a sua especialidade é apanhar os ossos dos lobos.
Por eles, ela vai durante dias pelas montanhas e desfiladeiros, pelos leitos secos dos rios à procura dos ossos, e quando consegue juntar um esqueleto inteiro; quando o último ossinho está no lugar e a perfeita escultura branca está erguida à sua frente, ela senta-se perto da fogueira a pensar qual a canção que irá entoar.

Assim que se decide, La Loba levanta-se e aproxima-se do esqueleto, ergue os seus braços e começa a cantar.
E os ossos nus e brancos das costelas e das patas do lobo ficam forrados de carne.
E La Loba canta ligeiramente mais alto.
E o todo o corpo do lobo começa a cobrir-se de pêlos.
E La Loba canta mais.
E a criatura inspira a primeira golfada de ar.
E La Loba não pára de cantar, com tanta intensidade que o chão estremece, o lobo abre os olhos, dá um salto e vai a correr pelo desfiladeiro.

Diz-se que num momento desta corrida, não se sabe se pela velocidade, se pelo salpico de água quando atravessou o rio, se pelo bater do raio de Sol ou da Lua no seu pêlo, o lobo de repente é transformado numa mulher que ri e corre pela floresta.
Por isso, se um dia estiverem perdidos na floresta, no deserto, na estrada ou na vida pode ser que La Loba vos ensine o caminho.

Mito da Mulher Selvagem,
recolhido por Clarissa Pinkola Estés
nas zonas fronteiriças entre E.U.A. e México

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Eu tenho um anjo


Podia ser uma letra de António Variações, mas não é. Podia ser uma aporia destas divindades... também não. É só um testemunho da minha excessiva propriedade terrena.

Recebi este lindo anjo num jantar de Natal, entoava cânticos ao som de harpas divinas parrampampampam (o anjo, não eu, embora vos fosse legítimo esse juízo de valor).
Ó Glória a Deus nas alturas! Ele tinha uma estrela, ele tinha uma vela que iluminava a ascese dos espíritos nesta época de renovação parrampampampam. E naquele limbo de travessas de bacalhau, garrafas e papéis de prendas onde eu via desfilar qualidades e bondade entre os homens de boa-vontade, atraiçoei o meu anjo.
Exibi-o desbragadamente a todas as pessoas, acendi-lhe a vela e tratei-o como se fosse a Estátua da Liberdade, brinquei com ele:
“E agora o Show dos Marretas”… parrampampampam.
Cheguei finalmente a casa, exausta de tanto contacto humano; ia ficar a sós com o meu anjo, uff! Abro a porta do carro para tirar pasta, sacos, tralhas e … parrampampampam, o meu anjo atira-se fulminante e depressivamente do estofo do carro para o asfalto duro, sujo e frio. Desconhecia que os anjos podiam ter tendências suicidas. Será que todos os suicidas são anjos que não suportaram a humanidade?
Apanhei-o com cuidado, recolhi a asa esfacelada, a sua mão amputada e subi as escadas pesarosamente:
“Onde estão os anjos da guarda dos anjos?”
Eu continuo a ter orgulho no meu anjo. É um anjo maneta e aseta, mas tem muita paciência…

segunda-feira, dezembro 11, 2006

Carta Desesperada ao Pai Natal


Querido Pai Natal,

(sou bastante conservadora e não vou mudar a forma de tratamento só porque estou à beira de um ataque de nervos, não concordam?
Não é por estar a flipar com o Natal e os ensaios dos teatros para o Natal, e as sessões de contos de Natal em catadupa, que me vou pôr a espumar para cima do monitor e escrever "yo broda, tás aqui dentro, topas?! Fazes aí um favorzinho?". Na! Sou uma pessoa bastante controlada e estável.)


Preciso muito de alguns presentes para já, antes da noite de 24 de Dezembro, por favor!
Eu sei que já estavas contente comigo, já não me vias nisto há muito tempo… não sei o que aconteceu… as companhias, talvez...
Só alguns, vá lá… é pouquinho… depois nunca mais peço nada, nunca mais quero esta vida, juro! Vou largar isto de vez!
Epá… eu ficava mesmo bem (pelo menos por hoje) -e juro por tudo- que nunca mais me afundava neste vício, se me orientasses aí umas cenas… tipo:

- Férias de Natal; apesar de adorar estar com os miúdos já estou cansada de lhes dizer: “ Não, os Reis Magos não comiam pouco. Vou contar o que quer dizer "Mago" e porque é que lhes chamaram assim…”

- Reconhecimento da identidade cultural. Se alguns professores, compreendessem que a ética, os valores, a humanidade não se ensina nos livros, não se aprende em histórias vazias de sentido. Aprende-se com outros afectos, e outras histórias passadas com paixão. Para isso, nada melhor do que o nosso património literário oral.

P.S.- Se não trouxeres neste Natal, vou-te esperando, esperando, esperando… prometo que me porto bem.

domingo, dezembro 10, 2006

Porque hoje é Domingo.

Quando chega domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar...
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
«Bom tempo para amanhã»...
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.

Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!

Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.
Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bordou,
quando ela era ainda muito menina...

Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
— Porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!
Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.

Partindo deste principio,
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.

E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores...
Penso isto, e vou a grandes passadas...
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia.
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz...
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
-ao sol como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem-amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida...

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura...
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.

A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos...
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bem feito
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés...
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos.
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
— Rapaz, traz-me um café...

O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
— Olha, quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol...
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
— .... no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água...
... um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou...

O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?...
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou...
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes...
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó...
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!


Domingo, Manuel da Fonseca

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Contos... de Natal, está visto!

Nesta altura do ano tudo orbita em torno da celebração do aniversário do homem mais conhecido do mundo.
E vice-versa se considerarmos a crença na criação deste pelo Mesmo antes do Seu nascimento... hummm, complicado.
Bom, eu como boa católica já embarquei no espírito eufórico (e por vezes consumista) da quadra: já comprei os gorros psicadélicos: de Natal, para enterrar na cabeça dos familiares na noite de consoada, seleccionei as músicas: de Natal, e claro não podiam faltar os contos: de Natal.

Quem quiser espreitar umas sessões de Contos:

Dia 22 de Dezembro- Biblioteca Municipal de Ansião (a 30 Km de Coimbra, sentido Conímbriga IC3/sentido Tomar IC8)

Hora- 21h30m

Público- Misto ( Adultos e Crianças)

Bilheteira- Entrada Livre


Dia 23 de Dezembro- Livraria Salta- Folhinhas ( Rua António Patrício, Porto)

Hora- Maratona de Contos! É o dia todo com contadores de histórias e músicos!

Público- Infanto-juvenil... e adultos se não incomodarem muito :)

Bilheteira- Entrada Livre

domingo, dezembro 03, 2006

É fresca ou natural?- Parte I

Nestes últimos tempos, os meus dias têm tido pontos áureos intrigantes. Talvez por ter voltado à terra natal e ter encontrado aquilo a que chamam "rotina".
Um desses pontos é quando saio da escola, com os tímpanos a latejar ameaçadoramente, e me sento no café do costume, a enfrentar os berros do empregado atirados para trás do balcão: "Sai uma tosta-mista!"; "Olha o galão quentinho!".
Se não fosse o facto de ter estado com 20 crianças com falta de ritalina (ou de um padre) iria dizer que os pregões dão uma cor medieval ao estabelecimento com problemas de identidade geracional.
É um café cómico, lembro-me de em miúda ir lá e já aí tinha aquelas cadeiras em pele com encostos triangulares. Uma parede ainda tem a alcatifa "chique" desses maravilhosos anos 80 (e penso que as prateleiras com as garrafas de vinho do Porto e os chocolates também, a avaliar pelas caixas amareladas pelo sol). As casas de banho são a prova de que o Srº Carlos compactua em investigações com a N.A.S.A. ou entidades semelhantes. Autênticas cápsulas onde o Homem de 2006 é transportado para a década de 50, há quem diga que já sentiu fragrâncias de outros tempos...
E não é que gosto de lá ir? Começo sempre por beber uma Vidago, tenho esperança que o gás me faça arrotar as decepções do dia. Mas outro dia, o empregado novo armou-me uma cilada:
- Boa Tarde! Então o que vai ser?
- Uma Vidago, por favor. - disse eu a puxar de um cadernito e uma caneta, onde costumo escrever notas importantíssimas como esta que vocês estão a ler. E nesse momento, ele lança-me a pergunta que me revoltou, que me inspirou. Uma pergunta que me fez ponderar se realmente quereria aquela Vidago matreira ou prefereria conviver insuflada com as contrariedades do dia sem as arrotar.
A pergunta que esse agitador de mentes me fez foi:
- É fresca ou natural?
Compreendem agora os leitores o meu sentimento dúbio. Vacilei entre o espanto e a simulação, entre o deslumbramento e o cansaço, entre a indignação e a bazófia, entre o responder e o ficar calada. Respondi:
-Fresca.
Tal como optei por responder, optei por ficar espantada, deslumbrada e ainda indignada com aquela pergunta.
" É fresca ou natural?" Que raiva tinha eu daquele empregado de mesa! Para além de despejar cinzeiros, tirar finos e servir lanches com toda a paciência do mundo, ele ainda se revelava um óptimo Darwin, fantástico Poirot e um Freud razoável.
"Não sou fresca, sabe, mas nisso do Homem-Natural também não acredito."
E enquanto ia engendrando esta e outras respostas, bebia a água, comia o folhado, e os habitantes daquele planeta esquisito iam entrando e saindo. Como se não tivesse acontecido nada. Naquele café meio-clandestino, disfarçado de coisa velha e sem valor onde eu descobri de onde era não-natural.